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#026 | NORMOSE E A ESCRAVIDÃO NATURALIZADA [artigo]


Capa do álbum 'Eu Não Sou Boa Influência pra Você' (2017), da banda paraibana Seu Pereira e Coletivo 401. Ilustração fantástica do artista Shiko.
“A opressão é domesticadora. Um obstáculo gravíssimo para a conquista da libertação é que a realidade opressiva absorve os que nela estão e, assim, age para submergir a consciência dos seres humanos.” - Paulo Freire

Historicamente falando...


⠀⠀Desde os primórdios da humanidade, regras de convivência e ordenamento hierárquico delinearam os comportamentos sociais. Entre os séculos XV e XVII, era comum a 'caça às bruxas', acusadas de feitiçaria pelas autoridades da época, acabavam na fogueira, em praça pública, para deleite da plebe ensandecida com o espetáculo. Destino semelhante recebiam os criminosos - ou os considerados como tais -, por meio da forca ou guilhotina e, mais uma vez, para deleite da plateia e seus brados apaixonados: 'MORREU PORQUE MERECEU', 'BRUXA, SERVA DO DIABO', 'BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO', 'COMUNIS...'; ops, bem, qualquer semelhança não é coincidência. Além disso, podemos utilizar o exemplo dos gladiadores da Roma Antiga que lutavam até a morte entre si, inclusive com animais selvagens. Fugindo do entretenimento, nos deparamos com a era colonial, onde a escravidão predominou abertamente, reduzindo milhões de seres humanos a mercadorias.


⠀⠀Obviamente, com os fatos mencionados, sentimos vergonha de nossa espécie, do negacionismo científico que ceifou milhares - senão milhões - de vidas ao redor do mundo, nos restando apenas questionamentos: como não perceberam a sociedade doente da qual estavam inseridos? Como o governo permitiu tudo isso? Grande parte destas respostas podem ser encontradas em uma única palavra, a 'normose', ou seja, a doença de ser 'normal'.


Definição


⠀⠀O conceito de normose foi cunhado na década de oitenta, por três psicólogos: o brasileiro Roberto Crema e os franceses Jean-Ives Leloup e Pierre Weil. Tendo como base o pensamento de grandes estudiosos, como Erich Fromm (1900 - 1980) e Carl Jung (1875 - 1961), a normose se apresenta quando o contexto social predominante está inserido em um desequilíbrio crônico naturalizado socialmente. Tais desequilíbrios ficam mais evidentes durante grandes transições mundiais, a exemplo das revoluções e guerras, que resultam em mudanças drásticas na estruturação social e econômica, escancarando as desigualdades e problemas vigentes.


⠀⠀Ou seja, podemos considerar que a normose é o conjunto de hábitos sociais normatizados pela sociedade, mas que são essencialmente doentios nos mais distintos graus, sendo que, a nível individual, resulta na infelicidade, patologias físicas e psicológicas, além da perda do sentido da vida. Já em nível global, resulta na exploração, mortes e desigualdade.


Meritocracia... Who?!


⠀⠀Infelizmente, a presença da normose é mais comum do que imaginamos. Um exemplo assertivo é a corrida meritocrática imposta socialmente, com slogans como: o trabalho dignifica o homem; trabalhe enquanto eles dormem, estude enquanto eles se divertem, persista enquanto eles descansam, e então, viva o que eles sonham e afins, desconsiderando o contexto macro da desigualdade social. A par de tudo isso, a rotina árdua se atrela a ideia de sucesso imposta desde os primórdios da educação básica do indivíduo, fazendo com que a busca por ascensão profissional assassine sonhos e vocações pessoais, transformando-o em um autômato da normose.


⠀⠀Quando isso ocorre, a competitividade começa a ser normatizada, insatisfações surgem e patologias como a ansiedade e depressão passam a ser as principais comorbidades psicológicas do século, graças a somatização de frustrações pelo não atingimento das obrigações socialmente impostas. A coisa mais irônica em tudo isso é que, com a busca desenfreada por realização social e profissional, há uma desconexão com a essência do próprio ser, resultando na sensação de solidão e vazio, e na maioria das vezes, graças a enraização da normose, o indivíduo não consegue identificar o problema. Com isso, válvulas de escape passam a ser empregadas para tapar lacunas internas, como o abuso das drogas, má alimentação e a própria violência.


"[...]a rotina árdua se atrela a ideia de sucesso imposta desde os primórdios da educação básica do indivíduo, fazendo com que a busca por ascensão profissional assassine sonhos e vocações pessoais, transformando-o em um autômato da normose."

⠀⠀Assim como na antiguidade, com o advindo das novas gerações, os 'hábitos normóticos' sociais vão sendo substituídos, até mesmo mascarados. Podemos tomar como exemplo a escravidão explícita apresentada nos livros de história. Comparando a nossa realidade, em conceitos gerais, ela deixou de existir desde o início do século passado. Oras, mas se deixou de existir, o que preencheu esta lacuna? Sim, o mercado de trabalho.


⠀⠀Caro leitor, você pode pensar: “nossa, mas impossível, trabalhar não tem nada a ver com escravidão”. Não mesmo? Vamos analisar os fatos:


⠀⠀- Fornecemos boa parte de nosso tempo à manutenção do Capital, seja da indústria, seja do comércio, ou das empresas, em detrimento de uma classe minoritária e de nossa subsistência, por um ordenado ínfimo do que produzimos;


⠀⠀- Segundo avaliações do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o salário mínimo necessário para atender as demandas básicas do povo brasileiro deveria ser de R$4.673,00 (estudo referente ao mês de abril/20), contra R$1.045,00 do praticado atualmente;


⠀⠀- Além disso, o racismo institucionalizado fica evidente, como aponta uma pesquisa realizada pelo Instituto Ethos: pessoas negras ocupam 6,3% dos cargos de gerência, sendo que, o número é ainda inferior quando analisamos o quadro executivo das empresas; 4,7%;


⠀⠀- As chibatas foram substituídas pelas advertências, as ameaças de demissão em meio a uma pandemia se assemelham ao fim da escravidão escancarada, onde os escravos eram lançados às ruas, jogados à própria sorte, sem qualquer amparo legal ou direitos trabalhistas.


"...pessoas negras ocupam 6,3% dos cargos de gerência, sendo que, o número é ainda inferior quando analisamos o quadro executivo das empresas; 4,7%"

Últimas considerações...


⠀⠀Percebe agora a sutileza da escravidão moderna? Nada é mais escancarado como antes, os alicerces exploratórios permanecem intocáveis, passaram apenas por uma reforma de baixo custo. A burguesia comanda, o clero manipula e a massa obedece, pensando possuir autonomia às próprias decisões. Mas como possuir autonomia se a própria educação é moldada para não permitir a emancipação do oprimido? A partir disso, a normose envolve a sociedade feito um polvo abstrato, onde muitos, agarrados aos seus tentáculos 'protetores', o defendem cegamente, por não possuírem olhos para enxergar a 'cabeça' do mesmo, o animal em seu estado macro.


⠀⠀Em suma, tudo o que foi dito acima poderia se resumir em uma única frase do educador Paulo Freire: “A opressão é domesticadora. Um obstáculo gravíssimo para a conquista da libertação é que a realidade opressiva absorve os que nela estão e, assim, age para submergir a consciência dos seres humanos.”


⠀⠀Que a escravização pelo Capital, a destruição do meio ambiente visando “desenvolvimento”, consumismo desenfreado que fora naturalizado atualmente, tornem-se hábitos condenáveis pelas próximas gerações, assim como o fazemos no que diz respeito aos fatos históricos, a exemplo da inquisição, regime escravocrata e assassinatos em praça pública para entretenimento e coerção social. De imediato, há necessidade em olharmos para nós mesmos e menos ao externo, na busca de nossas vocações e o que desejamos de forma autêntica, pois dessa forma estaremos contribuindo para um mundo melhor, ou seja, trabalhando o micro, para transformação do macro.

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Referências e indicações:



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