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#010 | ÀS MARIAS, a dor da violência doméstica [poema]


Modelo: Kâmila Kali
"mas com quantas outras Marias essa mesma sorte não se consumou?"

a vida seguia sua cadência incontida

ordens, roupas, ardor, angústia

a dor guardada nos porões da retina

questionando os porquês dessa vida dúbia

desesperança latente, carente e despida


como salvação resolveu se casar

momento de felicidade quase pecadora

sentia medo até de anunciar

como se fosse da loteria a mais nova ganhadora

pra evitar a inveja, resolveu se calar


Maria se calou e seguiu sua sina

"embuchou em péssima hora"

a vizinhança toda dizia

o marido ouvia próximo a vitrola

a antiga felicidade fora suprida pela pinga


como boa esposa que era

lavava, passava e cozinhava

seu corpo miúdo, bucho pesado,

quase uma Quimera

a autoestima descia pelo ralo

junto a alegria dos olhos dela


atravessava o banheiro

nem olhava pros lados

foge do que vê no espelho

como quem foge de seu carrasco


dia a dia o homem se atrasava

"será que está no boteco, ou no colo da outra?"

a vizinhança murmurava


a janta já estava gelada

quando o homem chegou...

cambaleou, arrebentou a porta dando risada

Maria os olhos arregalou

'essa noite ele me mata'

foi o que ela pensou

'eu não posso fazer nada'

o homem se aproximou 

"DESSA NOITE VOCÊ NÃO PASSA"

assim vociferou

na mão esquerda, a peixeira empunhada


Maria correu 

aos prantos alcançou a cozinha

jogou tudo o que viu pela frente

panelas, copos e tudo mais que havia


a fúria fora atiçada

o homem desgovernou

cambaleava graças a cachaça

se escorando na parede a alcançou

'a morte cheirava a pinga barata'

com esse pensamento ela quase desmaiou


o homem a agarrou pelo braço

a mulher arrepiou

o homem estava descontrolado

Maria tremeu, com os olhos implorou

a ira dominara o carrasco

foi aí que ela se deu conta... 'ele nunca me amou'


o homem enrijeceu,

sua face se revelou monstruosa

a mão com a peixeira se ergueu

'teria chegado a minha hora?'


por milésimos de segundos

Maria não se tornou estatística

ela foi mais rápida

com o braço livre

escondia uma faca 

desferiu um golpe certeiro

bem no centro do peito


seu carrasco caiu feito saco de batatas 


como quem lava a própria alma

o golpeou por trinta vezes

a alma fora lavada

mas não era por qualquer sangue

era pelo sangue de quem amava


NÃO, ESSA NOITE VOCÊ NÃO ME MATA!


exausta

Maria escorreu lentamente até o chão...

...misturou-se ao sangue quente

tornaram-se um só

fruto do mesmo ventre

renasceu naquela noite

ao matar sua 'serpente'


a faca despencou ao lado

admirou o corpo estirado a frente

o sangue jorrando das fissuras

como jorrava de sua alma ardente


drama diário, aquela era a sua sina

o marido chegava em casa mamado

a pele dela usada como terapia

o homem fora abusado

quando ainda nem o nome escrevia

há décadas estava "amarrado"

mas que culpa tinha Maria?!

Maria guardava um grito calado

a vizinhança não sabia

ele dizia que se descobrissem

do dia seguinte ela não passaria.


Maria pegou o telefone

discou à polícia

'antes que me questione

meu marido está no chão da cozinha

seu corpo nem tem mais sangue

o matei por mim e minha filha

estou grávida de oito meses

era ele, ou nossa vida'.


...


estatística Maria quase se tornou

mas com quantas outras Marias

essa mesma sorte não se consumou?

__________________

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