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#40 | O ROTEIRO DE ELÁLIA [carta]


O PASSADO (Paranapiacaba - SP, 2018)

⠀⠀Ainda que me reste o pouco, terei o ar para respirar. Por mais que tenha me abandonado no piso da cozinha, ao lado de uma garrafa de whisky, terei como viver, o que respirar e o que beber. Você e suas confusões, é tudo tão difuso, mescla certezas falhas com mentiras inconscientes, não há mais chance dum retorno, desde aquele – fatídico – momento em que resolveu sair por aquela porta branca amadeirada, deixando rastro de odor corporal e um perfume inspirado que comprou na terça da semana passada.


⠀⠀É, você tem suas razões, mas não julgo estar errado também. Quem sofre de impulsos indomáveis, deve segurar as rédeas para não deixar escapar a razão. E você foi mestre de suas escapatórias. Suas unhas vermelhas feitas com destreza, coitadas, nem sua beleza permitiu aprisionar as razões, escaparam por entre as unhas e dedos irados como areia da ampulheta, escorrendo e escorrendo, como água que sabe seu momento de cessar, de se esvair.


⠀⠀E essa tal coisa de se entregar, sempre fui assim, desde tico de gente. As primeiras relações que o digam, você sabe como foram, afinal, de detalhes eu nunca te privei. Exceto agora. Os detalhes são sórdidos demais. Me privo deles, pois não quero te machucar, como também e principalmente, me ferir mais uma vez pelas sobras que o mundo kármico largou na mesa de madeira e vidro da copa. De resto eu me entrego, vulnerabilizo e me fodo, mais uma vez, nesse chão gelado, dramático, só para deixar que minha indignação sobreviva nessas quatro paredes, corra feito um cão agitado por todo o dia, até que não tenha mais energias para se manter ativo e resolva me deixar de lado, caindo em sono bélico feito bomba atômica da segunda guerra. Estou em guerra.


⠀⠀A bebida já subiu. Agora tudo está mais bonito, leve e... Eu quero chorar, preciso chorar, para esquecer o que ela me fez, preciso gritar mais alto que o ranger do chão de madeira. A música tocando não tá ajudando, novamente aquele dia em que fomos ao teatro me arrasa, eram atores famosos, mas seu brilho ofuscava qualquer fama, a plateia tornou-se palco e você foi a estrela da vez. A droga dessas lembranças não estão me fazendo bem, e você deveria saber disso, me mate de overdose logo, ou de abstinência de você, não aguento mais a inércia da qual estou prostrado, me resolva enfim, mas não me castigue com o karma que a inércia possui.


⠀⠀Como cê mesmo diz que eu escrevo muito bem, preferi vomitar por palavras tudo isso. É a carta que deixo a você, ao lado do vestido vermelho que tá guardado no armário tão grande, pro caso de querer voltar... Se encontrar essa carta, me encontre aqui também, mais abaixo, menor que a garrafa de whisky que me consumiu aos poucos, menos do que as memórias que exalam de você. Encontre-nos, descarte o que julgar necessário, só não me deixe aqui na inércia. A trilha sonora já deixei rolando, tem Blues no ambiente, para te deixar atuar mais uma vez, dessa vez em casa, a “estrela da casa”, mais uma vez.


Assinado: Salazar.

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(NOV/20)

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