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#51 | O CORPO QUE CAI [crônica]


MIRANTE SESC (São Paulo, 2018)

⠀⠀Eu tô vagando. Meus pés tocam o solo da calçada gelada, da rua acinzentada contrastando com um banner amarelo de alguma loja de bibelôs. Tá tudo fechado, 'é o lockdown', ouço longe, quase que com a voz marinada de desinteresse, como quem não quer responder, ou como quando o assunto se encerra por mau gosto e você ousa tocar novamente na fratura exposta.

⠀⠀Nunca presenciei tamanho espaço, em plena segunda-feira, ruas desprovidas de corpos humanos, transitórios, compartilhando espaço com as pestes urbanas, carros e tralhos surrados e inchados pelo devir da ansiedade e sedentarismo da nossa Era. Que bela era, era bela. Sabe, pode me taxar de convencida, mas apesar de tudo que me ocorreu, sigo com o que ainda posso ter, minhas longas vestes de amor-próprio. Foi há tão pouco tempo, mas já sinto a saudade do espelho me corroer as vísceras. Vaidosa, as maquiagens bem distribuídas sobre a escrivaninha, ao lado da cama branca. Mas isso não vem ao caso mais, o que herdei daquela vida foram as lembranças já esquecidas, todas retornaram, isso me perturba de uma forma quase ultrajante.

⠀⠀Mas isso não vem ao caso também, agora atravessei o tênue entre o fatídico e as confabulações, é o método a posteriori se manifestando, posso afirmar que todos estavam ligeiramente incorretos em suas previsões. É muito mais sobre o sentir, sem órgãos sensoriais. Vai além da previsibilidade de toda a ciência humana, vai além, o cérebro capado e condicionado de vocês não conseguiria dimensionar a compreensão disposta em tantas dimensões possíveis, bem no meio da Avenida Paulista.


⠀⠀Agora corro, salto e sobrevoo os ares, até o mirante do Sesc, absolutamente vazio. Sento no beiral e admiro tudo o que criaram, é como o João de Barro programado para fazer suas casas barrentas e precisas. A diferença humana é que as casas extrapolaram seus DNAs, agora a cidade sobrevive de vocês, diária, paulatinamente, te consome e você finge estar feliz. Veja, agora a cidade ficou cinza. Anêmica, desprovida de corpos humanos, transitórios, compartilhando espaço com as pestes urbanas, carros e tralhos surrados e inchados pelo devir da ansiedade e sedentarismo da nossa Era. Eu repito demais, não é?


⠀⠀Eu sei que sim. Olhando lá do alto, descubro que sou o Todo, a compreensão do que foram e do que serão, o sentir de mil mulheres em mim. Deus deve se sentir assim, eu sinto. Daqui dá pra ver, meu corpo sendo velado do outro lado dessa megalópole cinza. Mero corpo, mero corpo, se eu soubesse ser só o ínfimo desse mistério improcedente, faria o possível pra te vivenciar mais, a sua pequenez é extremamente incomensurável na importância do infinito. Aos que choram ao meu lado sem energia vital, deixem-me, vão viver seus corpos enquanto podem, VÃÃOOOO, não chorem pelo meu, cuidem dos seus e de suas vestes molhadas por lágrimas, não há necessidades aí, guardem na memória, com vocês, assim posso sentir estar vivendo novamente, a carne que me garantiu por esses trinta anos.

⠀⠀A chuva começa a cair, nuvens tomam o ar; a passos largos com o desaparecer da luz do Sol, escuridão. Meu corpo descansa agora n'onde veio, quem conheço sai lentamente, corpos vivos, mas tristes e abatidos pelo meu estanque precoce. Peço desculpas, não foi proposital. Eu até que me cuidei bem no tempo em que compartilhávamos do mesmo oxigênio. Com o devir do tempo, a massa negra repousa entre as lápides, as flores murcham-se e despedaçam-se em minha homenagem, pobres corpos vegetais, foram cedo demais para atender a demanda do meu velório.

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(MAR/21) 🍁

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